Vergonha Alheia

3 de setembro de 2012



A cena é a seguinte: dia de semana, 10 da manhã, num estacionamento próximo à praia o sujeito está terminando de se secar e colocar a prancha no automóvel, depois de surfar por um par de horas, quando toca o seu telefone celular:

- "Alô"
- "Alô Fulano. Beleza? Te liguei duas vezes pra ver o lance daquele contrato com o cliente..."
- "Ah é? desculpa, mas não ouvi o celular tocando".
- "Que barulho é esse? Tá na praia?"
- "Não, não... to na rua... tive que vir no banco resolver uns problemas. Daqui a uma horinha to chegando no escritório e a gente vê isso, beleza?".
- "Tranquilo, até mais então".
















O diálogo fictício reproduzido acima se repete, com algumas variações, na rotina daqueles que tem o surf como atividade de lazer, condicionamento físico e realização espiritual.

Eu já fui várias vezes o camarada dentro do carro inventando alguma desculpa esfarrapada ao invés de admitir que não atendi às chamadas anteriores pelo nobre motivo de estar surfando. Se estivesse malhando na academia - coisa que não faço nem que me paguem - ou mesmo jogando tênis será que teria esta mesma reação de omitir o fato? Provavelmente não.

Dia desses, por conta da divulgação do filme "Pegadas Salgadas" participei de uma entrevista transmitida pela rádio CBN em Floripa no programa do jornalista Renato Igor. Em certo momento, ele, que revelou ser também um praticante do surf, me inquiriu justamente sobre este comportamento: "Por que motivo muitos surfistas não admitem que estavam surfando quando alguém liga pra eles?"

Eu fui obrigado a rir da pergunta do colega jornalista justamente por me identificar com ela. Elaboramos um pouco sobre a possível resposta e ela acabou resvalando nos velhos preconceitos tão arraigados de que surfar é uma atividade de vadios, embora seja fato notório e consolidado que hoje em dia existem surfistas das mais variadas esferas sociais e profissionais.

foto: Beto Paes Leme

Mas então por que a negação e a vergonha de admitir estar surfando "em horário comercial"?  Em Floripa, as praias com boas ondas estão sempre cheias de surfistas ao longo da manhã e da tarde em dias de semana. Todos vagabundos? Devo ter medo de encontrar um vizinho ou o porteiro no elevador quando estou retornando do surf no fim de uma manhã de terça? Será que devo explicar a eles que trabalho em casa e tenho horário flexível?

Associar o trabalho ao prazer é mesmo um dilema para muitas pessoas. Se a sua atividade profissional envolve diversão, você é desde já culpado - e aqui me recordo de um trecho de Albert Camus no livro "O Avesso e o Direito", que demorei para entender: "Ser feliz é ser já culpado".



O prazer do surf é uma verdadeira promessa de felicidade aos seus praticantes. A energia do oceano, do sol, do vento e demais elementos da natureza despertam reações físicas do que convencionou-se chamar "felicidade". Essa tal felicidade é a experiência que dá sentido à vida, na sensação mental de que qualquer dia está ganho depois de deslizar por algumas ondas, mesmo que as condições não estejam lá essas coisas.

Assim, o surf torna-se um hábito tão desejado por ser uma atividade que impulsiona os seus entusiastas, fazendo com que os seus dias passem mais leves e com algum propósito, por mais trivial que seja. Mas este comportamento torna-se um fardo diante dos olhos frustrados de muitos indivíduos que simplesmente não conseguem enxergar alegria em suas atividades cotidianas - ou que ainda buscam descobrir uma fonte tão palpável de possível felicidade.

"Sim, Eu planejo surfar pelo resto da vida"



Como bem lembrou Teco Padaratz em seu depoimento para o filme Pegadas Salgadas, a imagem do "surfista bon vivant" será sempre um tapa na cara destes individuos, despertando inveja e ressentimento.  Pior ainda o surfista profissional que será sempre o felizardo mimado quando reclamar de qualquer coisa relativa à sua rotina de constantes viagens por paraísos litorâneos: "Vai arranjar um emprego de verdade!", dirão muitos.

De certa forma, neste jogo de aparências que é a vida social, o surfista se inclui no grupo de profissionais ligados às artes como músicos e pintores. "Vai largar o emprego pra formar uma banda?!", se espanta a tia do jovem de 22 anos recém-formado que descobriu que não leva o menor jeito para ser advogado.

Bom, mas a intenção deste texto se limita ao bom e velho surfista amador e à pressão interna e externa sofrida pelo fato dele tirar uma horinha de folga para o lazer de surfar. E aqui podemos comparar o surf a uma boa soneca, uma escapada ao cinema, o sexo depois do almoço, um intervalo para ouvir música, e mais uma extensa lista de atividades hedonistas e imediatistas.

"Um dia ruim na praia é sempre melhor que um dia bom no trabalho"



É claro que a busca do prazer ininterrupto e a qualquer preço mais cedo ou mais tarde certamente irá se revelar uma prisão mental para quem abusa desta premissa. Mas acredito que a pior prisão encontra-se na cabeça daquele ser engessado em um emprego que tornou-se um fardo em sua vida.

Aquele sujeito pouco saudável, sem ânimo nem perspectiva para nada além de acumular dinheiro e encher a cara de comida e bebida no fim de semana, e que durante a semana fica ressentido ao ver pessoas buscando alguns preciosos momentos de felicidade na sua horinha de surf matinal ou alguma outra atividade de lazer.

A estes poderiamos adesivar os seus automóveis com aquele recado simples e objetivo: "Tá estressado, vai surfar!", ou outros um pouco mais elaborados, como estes que ilustram o texto.




14 comentários:

Lucas Zuch disse...

Demais Luciano! Parabéns pela lucidez e prosa desta crônica, muito boas as análises!!

Filipe Antolin Teixeira disse...

Luciano: Tenho um capítulo de um livro que estou terminado exactamente com este ponto de vista!

Penso que é universal e tem muito que ver com a maturidade desse desporto, o qual, pelas suas carateristicas proprias, foge à percepção global que se tem de uma actividade desportiva.

Abraço

Saudações

Andre disse...

Só não dá pra concordar com a frase no último parágrafo ("Tá estressado, vai surfar!"). Já tem nervosinhos demais no lineup! Hehehe

Anônimo disse...

Mandou muito bem Luciano!!!Sem duvidas um dos melhores post que eu li ate hoje sobre o assunto

Rodrigo Santos Cunha disse...

muito bom o texto! Parabéns...

CAU disse...

Como sempre Muito bom o texto Luciano, parabéns.

Junior Faria disse...

Muito legal Luciano!!! Vou compartilhar blz?! Abs!

Per Gustav disse...

MESTRE!!! Compartilhado!!!

Anônimo disse...

Me desculpa, mas a pessoa que em dia útil esteja surfando, jogando tenis ou na academia, para mim passa a impressão sim de um ser vadio, afinal você deixou de atender um cliente (sei que a história é fictícia) ou deixou de fazer negócio pois estava surfando em pleno horário comercial. Acredito que não deve-se misturar lazer com trabalho (quando um não é a mesma coisa que o outro).

Se o seu trabalho é em casa e você faz o seu horário, aí sim, você faz o que quiser na sua hora de lazer, mas deixar de atender um cliente por estar surfando ou fazer o mesmo esperar para mim tem algo muito errado com isso.

No mais, ótimo texto é de se pensar mesmo.

ale disse...

Que essa galera continue (para sempre) presa no escritório. O line up agradece! :) abraçâo!

Marcos Velloso disse...

Na mosca!

Beto Gebara disse...

Muito bom, Burin.
Pena que amanhã já marquei visita a obra cedo e com a presença do cliente. Senão certamente ia fazer um surf entrando de leve no horário comercial. E sem culpa.
Parabéns pelo post.
Abraço.

A.R.T. Project disse...

Muito bom o texto.
Identificação à primeira vista!
"E assim a gente vai sendo muito mais do que tendo."

Abraço!

Rafael CB disse...

Este texto caiu como uma luva para muitos!! Inclusive para mim. É tempo de despertar para a felicidade.
Obrigado!
Abraço!

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