5 Pra 1: Fabrício Flores Nunes

22 de novembro de 2016




Idealizador do festival Lagoa Surfe Arte (LSA), o gaúcho Fabrício Flores Nunes é um homem cheio de ideias. Mestre e doutor em Aquicultura, ele mora em Florianópolis desde 1993 onde divide a sua energia criativa e realizadora em várias frentes, como a fabricação de pranchas alternativas Sea Cookies, os estudos superiores sobre contaminação ambiental e as atividades culturais ligadas ao LSA.

Após o sucesso da segunda edição do evento, que promoveu a exibição de filmes no cinema do CIC e encontros ligados à cultura surf na Lagoa da Conceição, ele tirou um tempo para falar sobre estas realizações e a sua relação com o surf e as artes:



 
1 - Fale um pouco sobre o Lagoa Surfe Arte e a sua avaliação desta segunda edição?

A expectativa desta edição foi suprida com maestria. Deu tudo certo! Esperávamos nosso público e fomos além. Atingimos com o festival de cinema, cinéfilos de plantão que tiveram contato pela primeira vez com a produção cinematográfica de surfe e elogiaram muito a nossa selação. O festival recebeu inscrições de filmes de cinco países e, de dentro do Brasil, mais de seis estados tiveram representantes. Fora isso, alunos do RS e PR para o curso de pranchas e muitos interessados no conteúdo vieram aproveitar pelo menos um dos dias de programação. O sábado com palestras, vernissage e pranchas de surfe também foi outro ponto alto do LSA’16. O debate foi rico e a palestra do Adrian Kojin, fantástica.

O Lagoa Surfe Arte de 2016 termina como o único festival de cinema surfe que exibe seus filmes dentro de um cinema, já é apontado como um dos mais conceituados dentro do surfe, que congrega todas as artes visuais possíveis dentro do mesmo espaço e que ainda promove debates e palestras com temas que são muitas vezes maiores que o próprio surfe em si. O Lagoa Surfe Arte é vitrine para a cultura surfe, com arte e história, e serve também para mostrar para a sociedade que somos mais do que uma simples diversão de beira de praia. Temos um conteúdo riquíssimo, existe muito que mostrar para o público sobre a nossa verdadeira essência. Precisamos ocupar esse espaço para revelar, divulgar e manter nossa história. Em Santa Catarina são quase 50 anos de história do surfe que precisa ser celebrado e dado o devido destaque.





2 - Como você enxerga a relação do surf com as artes e o conceito de “surf art”? Como você trabalhou isso dentro da curadoria do LSA? 

Me parece que ainda anda em paralelo. São raríssimos os surfistas que são sensíveis à arte, que possuem uma tela original em casa ou uma cópia registrada na parede da sala. O surfe tem um viés crescente como um objeto mercadológico, o que deve aumentar ainda mais agora se tornando um esporte olímpico. Eu comparo o surfe à dança, suave e fluido, equilibrado e contínuo. O surfe não é fragmentado, é plástico. A arte é o que ela consegue atingir. Depende de referências. Com o Lagoa Surfe Arte quero que a vitrine de arte/surfe transgrida a comunidade surfística. Queremos apresentar para a comunidade sensível ao belo, às artes, o conteúdo que temos. Talvez esse caminho seja mais fácil para ter um respaldo da comunidade do surfe.

O Lagoa Surfe Arte é também um espaço de aprendizado, de apresentação de referências. A arte óbvia não tem muito espaço dentro do evento. Queremos buscar a arte verdadeira, batalhar pela valorização da expressão pessoal de cada um que traz a sua paixão pelo mar para seu material de trabalho, sejam eles pincéis, canetas, madeira ou plaina. A arte plena, livre, com movimento e colorida. A arte surfe merece paredes nas melhores galerias do mundo e um dos nossos objetivos é poder revelar o mundo ao artista, sendo muitas vezes sua primeira exposição a participação no LSA. A arte no surfe é livre, ainda com raríssimos espaços como este que estamos trabalhando para se firmar
.

Quanto à curadoria, é um garimpo. Estamos sempre atentos, seguindo artistas pelo mundo usando as redes sociais, buscando referências contemporâneas em outras exposições e instalações, assistindo canais com conteúdo como o Arte1, lendo e fazendo cursos de capacitação para apurar o olhar. Existe muito que fazer pelo surfe e as possibilidades de como fazer  e apresentar isso ao público são inspiradoras.





3 - Conte sobre a sua experiência como shaper, a criação da Sea Cookies e o que te inspira dentro deste universo de fabricação de pranchas?

Engraçado isso, mas eu sempre fui shaper. Sabia que seria shaper em algum momento. A marca “Sea Cookies” já existe desde 2000 desenhada no meu violão, mas foi virar seda de prancha apenas 14 anos depois. Todas as pranchas que eu encomendei eram apenas desculpa para adentrar a fábrica e ver como era fazer uma prancha. Esse universo sempre me encantou muito.

Meu pai e meu avô materno me introduziram no mundo das ferramentas muito cedo e hoje trabalho praticamente com todas elas e com qualquer material. Particularmente gosto muito de trabalhar com madeira e já fiz algumas coisas. Não consigo passar por uma pilha de entulho sem olhar e quem sabe resgatar um pedaço de material. Durmo em uma cama que fiz de madeira de demolição, em casa tenho mesa, estante, bancos, horta, tudo feito de madeira. Sempre gostei de trabalhos manuais. Especificamente sobre pranchas, sempre lia muito antes de encomendar uma nova ou comprar uma usada.
 

Sempre gostei de experimentar novidades, testar. Faço isso há uns 20 anos pelo menos. Gosto de estudar sobre construção naval também, principalmente estudar designs de regatas, "planing hulls"... Em 2009 conheci um shaper carioca que topou passar meus desenhos para o computador e usinar meus projetos desenhados no papel, digitalizados e enviados por email. Foram três projetos e todos eles funcionaram. Pensei que sabia projetar uma prancha!

Eu comprei meu primeiro bloco depois de visitar um amigo que estava desgastando as espumas na churrasqueira da casa dele e resolvi visitá-lo finalmente. Quando eu vi até onde ele tinha ido, vi que eu poderia ir além e fui comprar um bloco pra me arriscar finalmente. Naquele exato momento percebi que poderia fazer uma prancha também. Não sei se ele ainda compra blocos e shapeia, mas foi a fagulha que eu precisava para me arriscar nesse mundo.




Com toda a experiência que tinha com outros materiais, tinha a segurança de me arriscar com PU ou EPS sabendo que teria que “escutar” o que o material que iria usar pela primeira vez tinha pra me dizer. Ia fazer a minha primeira prancha lá na casa do meu amigo, mas quando fui orçar a laminação e o laminador escutou essa história toda, me ofereceu uma sala que ele finalizava os shapes usinados dele para trabalhar. Era melhor que a churrasqueira e na frente da minha casa: eu tinha um shaperoom para usar. Sem grana para comprar uma plaina elétrica, comprei o básico (régua template, plaina manuais para desbastar a longarina, surform, lixas de madeira), recuperei meus lápis e comprei alguns outros novos, peguei meus rabiscos e ideias no meu caderno Moleskine genérico, troquei os filtros de uma máscara 3M que já tinha e pedi umas dicas para alguns amigos shapers.

Levei umas duas semanas shapeando a primeira prancha, a “Pumpkin Seed”, uma 5’10” singlefin. Na época estava me recuperando de uma torção no joelho e voltar ao surfe com uma prancha feita por mim foi indescritível. Até hoje, a sensação é presente. Lembro com clareza a primeira onda da primeira prancha que fiz. Fantástico. Depois dessa fiz mais uma sem uso de energia elétrica, toda na lixa, uma assimétrica para goofies, sendo 6’1” x 21 ¾” fish twin de frontside e 5’9” x 19” round quad de backside. Batizada inicialmente de “Crooked”, ganhou o nome definitivo de “Dr. Freak” depois de passar 14 dias em Lobitos (Peru) e se tornar a melhor prancha da viagem. Depois dessas duas recebi minha primeira encomenda, uma mini simmons 4’11” e tive que comprar uma plaina.



Fiz até hoje umas 15 pranchas, apenas para amigos próximos. Minha paixão e meus questionamentos hidrodinâmicos me afastam do que o grande mercado consumidor quer adquirir. Faço pranchas para quem quer se divertir no mar, polir o surfe, reencontrar a alegria de surfar, de quem está cansado em tentar ser quem não é e aceitar se descobrir. Gosto de shapear biquilhas, monoquilhas, finless... quero em breve fazer uma bonzer pra mim.

Minhas pranchas sempre foram mais largas que o normal. Nunca entendia, quando tinha uns 18 anos (1996), as pranchas tinham que ser estreitas. Borda fina, 18” de meio, rockers exagerados, nunca me conquistaram. Todos meus amigos queriam ser o Kelly Slater e eu deixava crescer o meu cabelo porque queria ser o Robert Edward Machado! Pedia pranchas mais retas, com no mínimo 19 ½” de meio e já com mais de 1,8m de altura minha prancha era uma 5’11. O nome “Sea Cookies” vem daí, das minhas pranchas e percepção de que esse é o caminho. Pranchas largas, como umas bolachas. Pranchas pro mar, bolachas do mar. Pranchas com uma boa remada, com facilidade de entrar na onda, otimizam o tempo do surfe, aumentam teu quantitativo computando mais ondas por sessão, aumentando a diversão e, se você surfa muito mais e cansa menos, é muito melhor.


O que me inspira no universo da fabricação de pranchas é buscar fazer uma prancha que seja a mais fluida possível, proporcionando uma velocidade perceptível de quem usa, tornando o surfe mais recreativo do que esportivo. As Sea Cookies pretendem ocupar a sala de estar ou jantar de quem as adquire, por serem esculturas funcionais extremamente bem acabadas, como uma peça de arte. A prancha de surfe da grande maioria dos surfistas fica mais tempo fora da água do que dentro dela. Então porque guardá-la na garagem ou no homebox? Quem tem uma Sea Cookies, tem arte no deck e inovação e engenharia no bottom.




4 -  O que o surf te ensinou?

Eu ganhei meu primeiro skate aos 5 anos, raspei a primeira parafina de uma prancha com 8 e imbiquei na primeira onda que tentei surfar com a prancha do meu primo nesse mesmo verão de 1987 em Quintão, RS. O surfe já se apresentava como uma escola pra vida. Comecei a surfar quando cheguei em Florianópolis, em 93, com 15 anos, apesar de ter uma prancha prometida para meu 12° aniversário - dos 10-15 morávamos em Brasília e pouco poderia fazer com uma prancha no meio do Cerrado.

Desde que cheguei em SC, sempre fui um surfista de final de semana, visto que morava no continente, sempre tive que estudar e logo depois comecei a trabalhar. Tive a certeza que não seria atleta depois de umas duas baterias em campeonatos que me inscrevi. Era muito nervosismo e pouco prazer, e me afastar do sentimento de diversão nas ondas me fez ver que não era meu caminho.

Os anos foram se passando, algumas pranchas encomendadas e fui observando que meu caminho não era dentro da linha radical. Minha diversão está no deslizar, no correr a onda, na conexão... poucas manobras me dão mais prazer do que um longo floater, uma rasgada perfeita de backside ou um cutback de mini simmons. Sou feliz surfando ondas de 1 metro, o melhor humano que vive dentro de mim se sobressai depois de uma boa sessão de surfe em um mar de SE com vento O, melhor ainda se tiver chovendo. Sou um surfista à moda antiga, que senta na prancha para ver a onda inteira do amigo, que comemora junto a onda surfada até a areia.

O surfe ensina a observar o melhor momento para tomar as decisões e de cobra por elas. Por vezes cobra caro. Estar no mar é contemplar em poder raciocinar com calma, de costas pra terra onde tudo te espera, e literalmente desconectado dela boiando sentado esperando o próximo set, a próxima oportunidade. As ondas são únicas, é a natureza delas. As oportunidade também. Aprendemos a se posicionar no outside com tantos outros querendo o mesmo, e mesmo acontece no nosso cotidiano comum. O surfe ensina que o ônus e bônus é quase um equilíbrio perfeito. O surfe acalma, lava a alma, reorganiza as ideias, fortalece, rejuvenesce, inspira. Eu não sei o que eu seria sem ter o surfe na minha vida.




5 -  Se você tivesse uma verba ilimitada para produzir algum trabalho artístico ligado ao surf o que você faria?

Investiria no próximo formato do Lagoa Surfe Arte em 2017 (risos). 
Mas, limitando aos trabalhos artísticos, faria algo que registrasse a história do surfe de forma mais jornalística. Gosto imenso de documentários e livros e acho que dá pra fazer as duas coisas em comunhão. Creio que produziria algo que unisse uma forma de expor para a comunidade a riqueza que temos de história e pessoas envolvidas no que hoje se tornara um esporte de mídia e patrocínios milionários, mas que ainda se encontra marginalizado e sem o apoio ideal. O formato de 2017 tá nessa direção!



Créditos das fotos: divulgação LSA, Sea Cookies e acervo pessoal



Um comentário:

Rafael Censi disse...

Parabéns, mereces todo o reconhecimento por idealizar e realizar um evento deste porte.
Parabéns, o surf merece um cara como você.
Parabéns a surf & cult por reconhecer estes "somadores" do esporte que amamos.
A comunidade surfística agradece.

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