Liberdade Comprometida

6 de outubro de 2009



Leio na Surfer`s Path a notícia de que o “eco-free-surfer profisisonal” David Rastovich, ou simplesmente “Rasta”, acaba de partir em mais uma aventura de alto potencial midiático, batizada de Transparent Sea Voyage.

A odisséia remando 700km a bordo de um caiaque individual, partindo do farol de Byron Bay - o ponto mais oriental da Austrália - até Bondai Beach na cidade de Sydney, seguindo a rota migratória das baleias, traz como mote despertar a consciência das pessoas para a necessidade de proteger estas baleias e toda a vida marinha – Rasta é um dos fundadores do Surfer`s for Cetaceans.

Acompanhado de uma equipe de filmagem e com cobertura diária no site do projeto, o surfista australiano cumpre com perfeição o papel de cidadão consciente e defensor da natureza, o que lhe rende bons patrocínios e visibilidade dentro e fora do mundo do surf. A jornada pela maravilhosa costa leste australiana deve durar até o dia 07 de novembro e contará com vários participantes ilustres ao longo do caminho, conquistando ainda mais espaço na mídia para o nobre motivo da travessia.



Ninguém discute o talento de Rasta dentro d`água, como um surfista cheio de estilo e habilidade. Parece-me também que ele possui uma motivação sincera e sem dúvidas é uma pessoa engajada nas causas que defende. Contudo, este tipo de aventura me suscita alguns questionamentos sobre a estranha união entre free-surf e profissionalismo. Em princípio, me parece que um termo anula o outro, já que a partir do momento que você está sendo pago para surfar, você deixa de ser um free-surfer.

Entendo o argumento de que ao usarmos o termo free-surfer profissional estamos tratando de atletas que, por contrato, não são obrigados a competir e sim, apenas participar de eventos promocionais e o melhor de tudo: viajar para picos paradisíacos do mundo para serem filmados e fotografados para as campanhas publicitárias de seus patrocinadores. Assim, free-surfers como Rasta são, em uma análise simplificada, pagos para curtir a vida. Uma equação que se sustenta no fato destes esportistas proporcionarem a seus patrocinadores o, as vezes intangível, retorno de imagem com suas performances.



Este paradigma entre free-surf X surf profissional foi muito bem registrado no filme Blue Horizon do renomado cineasta de surfe Jack McCoy, que traça um paralelo entre a vida cool de David Rastovich e o universo competitivo do tricampeão mundial Andy Irons.

Tirando a beleza fotográfica desta produção da Billabong, patrocinadora dos dois atletas, existe um aspecto que passou batido pela mídia especializada, mas me chamou bastante atenção: a abordagem um tanto radical que colocou Rasta e Irons como antagonistas, o primeiro retratado como um herói e o segundo como o vilão de um roteiro forçado.

Pergunto-me até hoje o que teria levado a gigante australiana do surfwear a deliberadamente arranhar a imagem de seu principal competidor e garoto-propaganda, retratando-o como um surfista agressivo e sem feeling, focado somente na grana que poderia ganhar em cada campeonato?

Sem querer entrar no mérito desta representação ser 100% verdadeira ou não, olhando para trás, não teria sido este um dos motivos para a crise existencial que se abateu sobre Andy poucos anos depois? Afinal de contas, o fato é que o capitalista e frio surfista de competição de repente viu-se desiludido e desmotivado com o circo da ASP e decidiu simplesmente abandonar o barco no meio da temporada.

Quanto ao Rasta, ele só se beneficiou da abordagem exposta no filme, alcançando uma legião de fãs, atraídos por sua cada vez mais cultuada imagem de surfista de alma. Atualmente, muitos outros free-surfers buscam alcançar este status, e parecem querer de alguma maneira justificar a boa vida que levam, que é poder viver de um esporte saudável como o surf, repleto de paisagens exuberantes e contatos com novas culturas.

Nada contra o free-surfer querer encontrar um sentido a mais para a sua vida do que apenas viajar ao sabor de vento e cumprir a rotina de viagens e ensaios fotográficos “impostas” pelos patrocinadores. O problema, a meu ver, é quando esse propósito de vida se embasa em um nacionalismo rasteiro.

Prefiro não citar nomes, mas me causa um certo incomodo ver alguns big riders aparecerem na mídia dizendo que estão “levantando a bandeira do Brasil” em suas aventuras pelo mundo, ao arriscarem as suas vida atrás de ondas gigantes. No meu ponto de vista, mais honesto seria dizer: “tenho a sorte de correr o mundo atrás das maiores ondas e faço isso em busca da realização pessoal, viabilizado pelo retorno que posso dar aos meus patrocinadores”.

Ou, se querem mesmo achar um sentido maior para suas existências, que procurem se engajar de corpo e alma em algum trabalho social/assistencial paralelo que complete o vazio de praticar uma atividade onde o benefício direto é essencialmente individual.



Aventureiros profissionais como Amyr Klink fizeram fama realizando feitos notáveis e colocando-se em situações bastante arriscadas, sem apelar para o tal “amor a pátria”. Na esteira deste exemplo, alguns sortudos como os windsurfistas Diogo Guerreiro e Flávio Jardim (foto) curtem hoje o sonho de dar a volta ao mundo a bordo de um confortável veleiro, num projeto patrocinado pela Mormaii e batizado de Destino Azul.

A contrapartida de um projeto como este traz o roteiro de sempre: a produção de filmes, livros, palestras e outras ações de divulgação, associando a marca do patrocinador à aventura, emoção, superação e consciência ambiental. Uma fórmula manjada, mas que ainda parece funcionar. Vale também ressaltar que os dois aventureiros conquistaram esta saborosa recompensa depois de cruzarem o litoral brasileiro em uma arriscada e extenuante travessia marítima, munidos apenas de suas pranchas.

E, afinal de contas, será que é preciso mesmo justificar o desejo de ser livre? Ou podemos simplesmente curtir a vida sem maiores compromissos? No mundo politicamente correto de hoje as respostas nunca soam espontâneas.

Um comentário:

Felipe Siebert disse...

belo texto, como sempre...

Sobre o Rasta/Andy: acredito que os campeonatos de surf vem perdendo espaço para o surf de verdade. Vejo isso principalmente fora da Brasil.

Muitos confundem o surf com um esporte baseado em campeonatos, principalmente os leigos, quando na verdade o surf é uma diversão, uma arte, que o ser humano, mais uma vez, tentou botar numa escala e ver quem é o melhor.

Todos sabemos da qualidade e admiramos o surf do Rasta e Rob Machado, mesmo eles não estando entre os "TOPs".

O longboard ainda é a linha de surf que procura um pouco mais da essência do surf (eu também surfo de pranchinha ok?). Na califórnia, o maior centro do longboard mundial, ninguem houve falar do campeão mundial Phil Rajzman.

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